Let's travel?

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Entre sem bater.

sábado, 28 de novembro de 2015

Você não está aqui

Oi, como você está? Está bem? Tem certeza, ou esse sorrisinho é só pra tentar esconder tudo o que se passa aí dentro? Ah, eu estou bem. Estou muito bem, aliás. Estou feliz, sabia? Sim... estou feliz como nunca estive na minha vida até então. É tão bom poder realizar sonhos e ver a vida se formando pouco a pouco. Tive que escolher sozinha alguns caminhos meus. Acostumada a ter você sempre ao lado me apoiando, confesso que em alguns momentos foi meio difícil e duro de aceitar. Realizei seu maior sonho (que não era o MEU sonho, fiz isso por você): me formei na USP! Usei capelo e beca, fiz juramento e tudo. Realizei seu sonho e você nem estava lá para ver. Agora fui atrás daquele que era o MEU grande sonho, a Psicologia. Você não estava aqui para me ajudar a escolher a melhor faculdade, você não estava aqui para comparar comigo o custo e o benefício, você não estava aqui para chorar desconto na matrícula. Tive que fazer tudo isso sozinha, do jeito que você me ensinou. Você precisava ver eu argumentando para não pagar a matrícula que queriam me cobrar, eu vi você em mim ali naquele momento. E consegui, você não estava lá, mas me ensinou direitinho. Ficaria orgulhoso de ver. Agora estou concluindo o primeiro semestre. Aprendi tanta coisa legal, você ia adorar me ouvir contar. Aliás, o meu irmão também está finalizando o primeiro semestre de Engenharia. Ele volta no carro todo animado me contando que é o melhor aluno da sala, acredita? Coisas que ele gostaria de contar para você, mas você não está aqui. Lá na escola está tudo bem. Estou indo para meu quarto ano de trabalho. Só tenho a te agradecer por você ter me incentivado a mandar meu currículo. Como sempre, você que me apoiou e me ajudou a trilhar e seguir em frente neste aspecto que foi e está sendo tão importante no meu caminho. Este ano fui auxiliar do Maternal, você precisava ver as fotos e vídeos que tenho, uma pena você não estar aqui para eu te mostrar. Você ia amar. Acredita que ensinei uma criança de 3 anos a cantar a música do alfabeto inteirinho em inglês? Valeu a pena todos aqueles anos de Cultura Inglesa, bem que você dizia que era importante. E os anos de CNA também foram importantes na minha formação, lembra que você que levou meu currículo lá? E ficou mais animado do que eu, quando eu fui chamada para trabalhar. Você morria de orgulho de ter uma filha "teacher", mesmo eu ganhando super mal, mas guardando cada centavo do que ganhava. Por falar nisso, lembra da poupança que você criou na minha conta? Continuo cuidando muito bem dela, do jeitinho que você me ensinou. Guardando lá tudo o que consigo guardar. Deste os tempos de garçonete do Buffet, lembra que você me levava às 8 horas da manhã e me buscava mais de meia-noite, em pleno domingo? Pra eu ganhar uns 50 reais... e quando juntava uns 500, você contava as notas junto comigo, e ia depositar para mim. Eu gastava o mínimo e já guardava o quanto conseguia guardar. E olha que ironia da vida, você que mais me ajudou, e foi o primeiro a tentar tirar tudo isso de mim. Tudo o que me ajudou a guardar todos esses anos, guardando junto sempre um pedacinho do meu sonho de ter meu próprio apartamento, você quase tirou de mim - o dinheiro e o sonho. Que bom que fui forte e inteligente, algo que você também me ensinou, e consegui mudar toda a situação. Muita ironia. Você quase tirar de mim o que você mesmo me ajudou a construir, depois não conseguir, porque usei da força e do pensamento calculista que você mesmo que me passou a vida toda também. Mudando de assunto, sabia que meu irmão está tirando carta? Tanto de carro quanto de moto. Ele está bastante empolgado. E eu ajudo como posso, tento ensinar ele a dirigir e explico para ele como funcionam os financiamentos de veículos. Eu tento, e dou meu melhor, embora nem sempre consiga tanto sucesso, porque isso não é um papel meu - eu assumi seu lugar, porque você não está aqui. Quem deveria estar ajudando ele era um pai, e não uma irmã. Mas pensando pelo lado positivo, que bom que eu existo. Existo e estou aqui. Por falar em carro, acho que você se orgulharia em ver a pessoa independente que estou me tornando. Fui atrás do seguro do meu carro e fiz sozinha por duas vezes, já... são pequenas coisas que parecem besteira, mas é nesses detalhes que vou vendo que estou aprendendo a viver sozinha. Ah, também fiz um cartão de crédito, e estou cuidando de fatura, anuidade, essas burocracias... Acho que me tornei uma pessoa bem parecida com você, até em alguns defeitos. Sou meio orgulhosa e muito racional. Meu irmão está se tornando parecido com você fisicamente. Teve que amadurecer cedo demais. Apesar de eu e minha mãe tentarmos com todas as nossas forças ocupar o seu lugar, o lugar continua sendo seu. Ou continuava. Quando ele mais precisou de você, você não estava aqui. Quando ele se viu de frente com a vida, tendo que escolher caminhos para trilhar, você não estava aqui. Me orgulho de mim mesma por ser madura o suficiente para aconselhar. Me orgulho de ser parecida com você o suficiente para poder ter falado para ele as coisas que você teria falado. Mas, mesmo assim, eu não sou você. A posição era sua, e você não estava aqui para ocupá-la. Sabe o pior de tudo? Acho que agora é meio tarde. Acho que nos saturamos um pouco, e ficamos tão acostumados com a sua ausência, que você parou de fazer falta. Tudo já se ajeitou e se encaixou de alguma forma. Em todos os lugares e todos os aspectos em que você fazia falta, nós três já demos um jeito de acertar tudo de modo a completar os espaços vazios. Os espaços que eram seus já não existem mais. Sofremos um luto enorme de quase dois anos, como quando alguém morre e precisamos nos adaptar a isso e reaprender a viver. A diferença é que você morreu mesmo estando vivo. Morreu e mesmo morto continuou nos magoando cada vez mais, cada mês mais. Agora já não cabem mais mágoas, porque não existe mais sentimento. Nossos três corações foram cortados e picotados em minúsculos pedacinhos por você. Agora que já nos reestruturamos, é como se você realmente tivesse morrido dentro de nós, a indiferença tomou conta, agora só nós preocupamos com questões meramente burocráticas, porque as questões emocionais já não existem. Restou apenas um pouco de dó, em meio a tanta indiferença. Você teve chances, muitas chances, enquanto ainda existia sentimento. Você podia estar aqui, foi uma escolha sua não estar. Uma escolha única e somente sua. Mas agora, sinto informar, já é tarde de mais. A palavra "amamos" ganhou uma letra "T" e virou "matamos". Te matamos. Te matamos dentro de nós.

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